terça-feira, 11 de março de 2008

Carta para a Vida

Buenos Aires, 11 de março de 2008


Amada Vida,


como é bom estar em contato com você todos os dias. No dia 2 de maio completaremos 400 meses de contato direto. E sou feliz por isso, apesar de saber que não posso, nem poderei me sentir plenamente realizado.


Parece contraditório, e talvez até o seja, mas toda a minha felicidade vai ter uma leve ponta (ou uma grande sombra, depende do dia) de tristeza, ao ver que existe tanta gente sofrendo neste mundo. E não falo do sofrimento da perda de alguém, ou de uma doença, coisas que são tristes, mas são inevitáveis nessa aventura de viver. Mas penso nas pessoas que sofrem por não ter o que comer, que sofrem por não ter onde morar, por não terem trabalho digno, ou simplesmente não terem trabalho. A minha felicidade não consegue ser suficientemente egoísta a ponto de esquecer essa realidade, que não é fruto da Vida, mas conseqüência da atitude dos seres humanos, daqueles que detém o poder e o usam a serviço do mal, em benefício próprio ou de poucos.


Mas agora, com a proximidade da chegada do Santiago, tenho sentido essa coisa indefinível do milagre da Vida muito mais perto. Acompanho o seu crescimento na barriga da mãe, sinto os seus chutes, as suas cabeçadas e me emociono ao mesmo tempo em que me impressiono em saber que há um ser vivo, um ser humano, uma pessoa crescendo aí dentro.


Há pouco mais de uma semana fomos a uma ultrassom 4D. Nesse dia, choveu como há muito tempo não chovia em Buenos Aires. Bairros ficaram alagados, comerciantes perderam mercadorias, houve um terrível caos de trânsito, mas nós estávamos em outro mundo, conhecendo o rosto do Santiago, com 28 semanas e 3 dias, dando uma de difícil e se escondendo com as mãos e com os pés. Mas nós o vimos, e eu posso dizer que ele é o joelho mais lindo do mundo.


Só que Você tem seus caprichos, eu sei. E só como um capricho seu eu posso entender o que me aconteceu na sexta-feira. Nessa última sexta, aprendi que Você, a Vida, passa tão rápido, que dura apenas três estações de metrô. E que a gente tem de saber vivê-La, tem de aproveitá-La, curti-La a cada instante. Depois de um dia cansativo de trabalho, às onze da noite... Um senhor entra na estação Uruguay do metrô, linha B. Ele se senta e na estação Callao começa a passar mal. Na estação Pasteur, ele já está quase imóvel, e chega morto à estação Pueyrredón. Ele está ali, a menos de dois metros de mim. Com a boca e os olhos abertos, o pé torto, a mão com as palmas viradas para cima, com a expressão de quem passou a ser apenas um corpo, apenas um corpo.


É, Vida, eu sei que Você é assim. Nascer e morrer são o pão e Você é o recheio deste nossa passagem por aqui. Aos que podemos, acho que nos cabe escolher o melhor recheio. Aos que não podem, acho que nos cabe fazer alguma coisa para que todos tenham acesso a essa “liberdade”.


Não sabemos quando Você vai chegar. O Santiago, por exemplo, sabe que chega em maio, se não for apressado. E sabemos ainda menos que Você vai embora. Pode ser hoje, pode ser daqui a 70 anos, num vagão de metrô. Mas, sinceramente, não importa não saber; nem mesmo não saber se Você vai continuar depois disso que chamamos de morte.


O que me interessa hoje é caprichar no recheio. Um bom queijo, um bom molho, alguns frios (apesar dos protestos dos meus pais vegetarianos), um tomate seco... e acompanhar esse sanduíche com um bom copo de guaraná.


Até sempre, um abraço,

I.R.