segunda-feira, 17 de março de 2008

Carta para a Língua Portuguesa

Buenos Aires, 17 de março de 2008


Querida Língua Portuguesa,


última flor do lácio, inculta e bela. Como não citar os versos de Olavo Bilac... não que eu goste de Olavo Bilac, para dizer a verdade não tenho muita simpatia pela pessoa que foi. Sei que os seus poemas merecem algum destaque na história da literatura brasileira, mas o poeta como pessoa... bem, passo. Mas a senhora sabe que talvez essa seja a frase mais famosa dita para defini-la. Ou estou enganado?


Bem, dona Língua, senhora com quase mil anos, mas séculos de transformações, para mim é um prazer ser um falante seu. Sei que todas as línguas têm as suas particularidades e riquezas, mas eu não conheço todas as línguas, e não posso falar sobre elas. (Para dizer a verdade, conheço a senhora, e conheço a sua irmã, a Língua Espanhola, e a sua prima Inglesa eu fui obrigado ao menos a reconhecê-la na rua.) Mas bem, como eu dizia, ser seu falante é um prazer.


Adoro pensar em suas possibilidades, nos sons dos seus fonemas, da sua vastidão e presença em quase todos os continentes deste mundo. Talvez a senhora já saiba, mas o que mais me atrai em ser seu falante é o fato de a senhora ser uma língua extremamente musical, pelo menos na sua versão que eu conheço.


Ah, é verdade, ia me esquecendo desse detalhe. A senhora é mesmo um ser complicado... senhora de quase mil anos, cheia de caprichos, de manias... dividida em diferentes pronúncias, em diferentes versões... a lusitana, a brasileira, a moçambicana, a angolana, a cabo-verdiana, a são-tomense, a guineense e a timorense (talvez ainda exista uma versão macauense, mas eu precisaria de um leitor de Macau que comentasse um pouco esta carta), mas sei que essas diferenças de pronúncia também acontecem entre um baiano e um gaúcho, ou entre um paraibano e um carioca. Seu mundo é vasto, velha jovem senhora!


Mas essas diferenças de pronúncia, de vocabulário, e até alguns detalhes gramaticais, não nos impedem de nos entendermos, de sermos todos “filhos” da mesma língua. E a senhora sabe que meus colegas portugueses e moçambicanos que passeiam por este blog dão fé disso.


E não acredito nessa palhaçada inventada como forma de dominação de que algumas pessoas falam certo e outras falam errado. E a senhora sabe que os inventores disso são os pedantes que acham que é bom manter esse sistema informal de castas em que vivemos. Mas isso é assunto para outra carta.


Só que tem uma coisa, e eu vou confessar para a senhora. A senhora sabe que sou professor. Sou professor de... sim da senhora... e conheço colegas de profissão que não nasceram como “filhos” seus, mas como “sobrinhos”. E, já que estou confessando, sei que a senhora sabe que alguns a tratam com muito respeito, que alguns a pronunciam como se deve, e que passam isso a seus alunos. Mas outros a maltratam, pronunciam um idioma que não sei qual é, e que, pelo menos hoje, ainda não existe. E sabe o que é pior, esses meus colegas exigem que seus alunos tenham uma pronúncia de “filho” do idioma. É, mas não sabem que rola e rola são duas coisas muitíssimo diferentes, e que pão e pau também, e que cal e cão, e xota e jota, e massa e maçã, e toco e toco, que “quem” não tem plural e que censo é sinônimo de recenseamento. Pois é, mas esses colegas têm o poder da caneta vermelha, o das portas da aprovação e da desaprovação, e se sentem um pouco deuses e acreditam que são seus “filhos”... mas são “sobrinhos”, e nem todo “sobrinho” (sejamos honestos) tem direito à sua herança.


É, dona Língua Portuguesa, obrigado por ser minha pátria, como diz Caetano. Obrigadíssimo por ser o meu ganha-pão. E quanto aos seus “sobrinhos”, não seja muito dura, mas quando puder, puxe um pouco a orelha deles.


Um grande beijo,

I.R.