sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Uma palavra

Os dedos já não correm sobre o papel. Já não há papel e os dedos, cansados, doloridos, trêmulos, já não conseguem segurar uma caneta. A modernidade o atinge. Seus delírios, antes regados à LSD agora cabem num LCD de 15 ou 14 polegadas.
O vinho acompanha seus pensamentos. O calor abafado e a umidade o deixam pegajoso. Os dedos digitam, não correm mais sobre o papel, mas nada disso o atinge e muito menos o faz se confessar. E haveria tanto para dizer...

São tantos os pensamentos esquecidos e escondidos. Os esquecidos já não incomodam, os escondidos fingem que não estão ou que não existem. Seu cachorro late para um carro que acaba de passar. Na televisão anunciam que o dólar voltou a subir, que o desemprego voltou a aumentar e se lembra de que a última vez que viu uma notícia boa no noticiário foi há alguns meses.

O copo está quase vazio. Toma vinho em copo. Comete essa heresia. Espera o momento da confissão, talvez apenas para si mesmo, já que sabe que de sua boca não sairá palavra. O corpo está quase vazio e os dedos já não correm sobre o papel. A modernidade o atinge, mas não sabe se tem tempo para tanta novidade.

O vinho e o calor não o deixam pensar claramente. O cachorro já não late. Sua mulher e seus filhos dormem. E as palavras que não saem de sua boca nem correm pelo papel estão a ponto de sufocá-lo. Numa tentativa desesperada de respirar, cospe. Cospe uma palavra, mas é só uma. A palavra sai tinta como o vinho. Não é uma confissão nem uma notícia do jornal. Do lado de fora a vida continua passando. O copo está cheio novamente e o corpo continua vazio.

A palavra cuspida, agora impressa no LCD não pede licença, mas também quer um copo de vinho para assim brindarem juntos.

I.R.