sábado, 14 de junho de 2008

Carta para o Zé

Buenos Aires, 14 de junho de 2008.

Prezado Zé,

Para ser sincero, não sabia para quem escrever, para quem contar certos pensamentos meus, filosofia barata de bar (ou de supermercado, não sei dizer). E aí pensei que você não se incomodaria. Você não se incomoda, não é? Bem, muito simples, se não quiser ler esta carta basta deletá-la, fechar a página, ignorar o link. Queimar vai ser meio complicado, a não ser que você esteja com raiva do seu computador.

Bem, mas vamos ao assunto, não é mesmo? Olha, Zé, eu descobri que ir ao Coto e passar meia hora na fila não é de todo mal. Tá, você deve estar me achando completamente louco. Você sabe que um pouco louco até pode ser, mas para completamente ainda me falta muito. O que acontece, é que no Coto vejo coisas, situações, que me mostram um pouco mais da natureza humana, ou então me fazem refletir sobre coisas que já tinha visto ou pensando antes.

Quer um exemplo? Bem, hoje eu estava na minha meia hora de fila habitual quando ouvi uma pequena discussão. Uma senhora Ruiva dizia a uma senhora Loura que não deixaria o senhor Sem Dente passar porque ela estava na fila, e não permitiria que o Sem Dente furasse a mesma. A dona Loura tentou argumentar, dizendo que eles estavam juntos no supermercado, e que ela tinha direito a que o Sem Dente estivesse ao lado dela, já que ela chegou na fila antes e o Sem Dente (faltava um... ou dois, não deu para ver perfeitamente) era seu parente. A dona Ruiva contra-argumentou que aquilo não era um motivo válido, já que se fosse assim ela teria de permitir que qualquer pessoa passasse na sua frente usando esse argumento de parentesco, e que se o Sem Dente quisesse ficar na fila teria de ficar atrás dela. A dona Loura podia ficar, já que havia chegado antes, mas o Sem Dente não. Teria que ir para o final da fila. E o Sem Dente acabou indo para outra fila, reclamando, claro. E mais tarde levou a dona Loura para a sua fila, com o apoio e a compreensão dos seus novos colegas.

Sabe, Zé, na hora eu pensei e continuo pensando que a dona Ruiva estava coberta de razão. Por que ela deveria aceitar que uma pessoa furasse a sua fila (com o carrinho cheio), apenas porque algumas pessoas insistem em dar uma de espertas ficando em filas diferentes para ver qual das duas anda mais rápido? Essa “esperteza”, esse “levar vantagem”, esse “estando bom para o meu lado, o resto que se dane”, me enche o saco. Sei que isso sempre esteve entre nós, mas acho que está mais presente, cravando em nossa carne as suas unhas, as suas garras.

E isso é o que se vê no supermercado onde você tem toda a família dividida em diversos caixas esperando o mais rápido; é assim no metrô onde todos dormem enquanto mulheres grávidas e senhores e senhoras idosos viajam em pé; é assim no ônibus onde a coisa não é diferente do metrô; é assim no trabalho, onde se espera ganhar dinheiro com o mínimo esforço, na base de esqueminhas, fingindo-se ser o que não é.

É, Zé, mas, infelizmente, parece que na nossa constituição o primeiro artigo mesmo é a Lei de Gérson, onde “O importante é levar vantagem em tudo. Certo?”.

Um abraço,

I.R.



I.R.